O Brasil é o
tal país que, na definição genial de Millor Fernandes, «tem um longo passado
pela frente». Ou, como sintetizou também com especial precisão o escritor
Stefan Zweig, «é um país de futuro… e sempre será».
Deus pode
até nem ser brasileiro, mas mesmo quando o Brasil parece caminhar para o
abismo, percebemos que, simplesmente, não cabe lá, de tão grande que é.
Terra
fantástica com situações miseráveis, paraíso de contrastes, já prometeu ser a
grande história de sucesso dos «emergentes», mas os últimos anos podem tê-la
condenado ao fantasma do fracasso.
Fica difícil
avaliar, neste momento, se prevalece a carga positiva ou negativa de um país
com um potencial humano e natural gigantesco, mas com contradições que resistem
a ciclos económicos.
Crescimento espetacular, travagem
assustadora
O modelo de
crescimento do Brasil produziu resultados espetaculares nas últimas duas
décadas.
No início
dos anos 90, o Brasil era essencialmente um país pobre, subdesenvolvido, estigmatizado
pela inflação e pela desvalorização da moeda. Muito marcado pelas diferenças
sociais e pela violência.
Nessa
altura, quando pensávamos no Brasil, tínhamos sentimentos negativos: aquilo não
ia correr bem.
Durante a
presidência de Fernando Henrique Cardoso, tudo mudou: a introdução do real foi
o golpe de asa financeiro que lançou as bases para o crescimento económico que
se iniciaria pouco depois.
Com Fernando
Henrique, o Brasil teve dois momentos cruciais: salvou-se economicamente e
começou o caminho da distribuição social.
Seria Lula,
seu sucessor na presidência, a acelerar, de modo impressionante, o lado social:
muitos milhões de brasileiros saíram da pobreza e passaram a fazer parte de uma
nova classe média. E isso é um crédito político tremendo do antecessor de
Dilma.
Os programas
«Bolsa Família» e «Fome Zero» passaram a ser bandeiras de políticas sociais,
citados como exemplos a seguir um pouco por todo o Mundo.
De tal modo
que, nesta dura e divisiva campanha presidencial, os únicos consensos foram
mesmo os legados sociais de Lula (só possíveis por aquilo que a presidência de
Fernando Henrique encetou): Dilma, Aécio e Marina juraram preservá-los.
Ainda hoje,
Lula é uma espécie de ás de trunfo da política brasileira.
Saiu do
Palácio do Planalto com índices de aprovação entre 70 a 80%, um luxo de que
mais ninguém (mais ninguém mesmo) se pode gabar no mundo contemporâneo.
Governar em democracia, na era do escrutínio em tempo real, é cada vez mais
difícil e a popularidade de Lula, nesse aspeto, é um fenómeno simplesmente
notável.
Acontece que
a história de crescimento económico espetacular, com consequências positivas na
distribuição social, durou duas décadas. Isso mesmo, «durou», porque já é
passado.
Teve o
«combustível» de taxas de crescimento anuais de 6 a 8%, à boleia de um ciclo de
preços altos das matérias-primas nos mercados internacionais. Estudo do PNUD,
divulgado no verão de 2013, confirmou esse crescimento impressionante: em 1991,
o Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil tinha a nota «muito baixo». Duas
décadas depois, merece um «Alto»: um crescimento de 47,5% da qualidade de vida
dos brasileiros nos últimos 20 anos.
Só que falta
encontrar o equilíbrio social. As manifestações do verão de 2013 puseram a nu
esse problema: o crescimento económico, mesmo com os programas sociais, não
resolveu as diferenças sociais.
A corrupção
(que, no Brasil, é clara em todos os níveis de poder, desde o local ao federal,
com forte relevância no plano estadual) agrava essa sensação de desperdício e
de injustiça social.
Novo paradigma, ganhe quem ganhar
Os 12 anos de
poder do PT (oito de Lula, quatro de Dilma) basearam-se num contrato: o
enriquecimento do Brasil pela via da exportação teria retorno na preservação
dos programas sociais.
Apesar do
desgaste de vários casos de corrupção a atingirem figuras muito próximas de
Lula e Dilma, a verdade é que esse contrato foi-se aguentando. E isso nota-se
nesta eleição: os 41% de Dilma no primeiro turno, sendo abaixo do que se
esperava, basearam-se, em grande parte, na massa de eleitores dependentes desse
grande «contrato social» alimentado pelo PT.
Sucede que
esse contrato está a acabar: mesmo que Dilma seja reeleita.
O Brasil
está com crescimento anémico. Os 8% já lá vão e foram reduzido a um décimo
disso. Ora, se um crescimento de 0.8%, hoje em dia, é quase festejado numa
Europa habituada à estagnação, no Brasil é socialmente insustentável.
Não chega
para alimentar os programas sociais, não dá para manter a rota desenhada para
crescer indefinidamente.
Para manter
o atual modelo económico, o Brasil precisava de crescer, no mínimo a 4%. Como
isso, tão cedo, não voltará a acontecer (sobretudo com os preços das matérias-primas
a baixar nos mercados internacionais), temos que concluir que a era do poder do
PT terminou – mesmo que Dilma vença Aécio no segundo turno.
Para Aécio
será mais fácil, caso vença: o discurso de «mudança» pega melhor num momento
como este. Dilma terá, certamente, mais dificuldades em moldar o seu discurso e
a sua prática de governação, caso garanta um segundo mandato.
Dilma no Norte, Aécio no Sul
Há dois
«Brasis» expressos nas urnas e o primeiro turno foi eloquente a prová-lo.
O Norte e o
Nordeste, muito mais pobres que a média nacional e dependentes dos programas
sociais, estão gratos a Lula e Dilma e permanecerão fiéis ao PT.
As pesquisas
dão quase 70% a Dilma nessas regiões para a segunda volta.
O Sul, o
Centro-Oeste e os grandes centros urbanos, mais ricos e menos dependentes dos
subsídios, votam Aécio, esperando menos peso do Estado na economia e mais
segurança urbana.
São Paulo
pode ser a chave. Dilma saiu-se mal em «SP» no primeiro turno, mas há a ideia
de que poderá recuperar um pouco no domingo. Em contraponto, Minas Gerais pode
ser a chave para Aécio. Antigo governador do estado, precisa de ter melhor
desempenho no segundo turno.
Também em
termos etários se notam clivagens: os mais novos (dos 16 aos 24) e os mais velhos
(acima dos 60) votam Aécio; entre os 25 e os 59, Dilma tem pequena vantagem.
Nas redes
sociais, Aécio tem mais apoiantes. O eleitor de Dilma surge como menos
sofisticado e mais agarrado a hábitos tradicionais.
Mas está
tudo muito dividido: aconteça o que acontecer no domingo, parece mais ou menos
inevitável que quase metade do Brasil não fique satisfeito com o nome do
vencedor.
Não é só
isso não ser bom: isso prova, essencialmente, que a era de «consenso» vivida
com Fernando Henrique e sobretudo com Lula (já não com Dilma), simplesmente
terminou.
O primeiro
mandato de Dilma foi um fracasso. O Brasil travou em vez de se manter em
velocidade de cruzeiro. Mesmo que, à última, a «Presidenta» obtenha a
reeleição, a noção de perda eleitoral é notória.
A eterna história de ricos e pobres
E, depois,
há a eterna história dos «ricos e pobres», que vemos nas novelas da Globo e que
corresponde mesmo à realidade: o Brasil tem dois «países» encaixados naquela
enorme porção terra, tão diversa e tão desigual.
Os mais
ricos não querem mais PT e votam Aécio. Dilma tem apoio maciço dos eleitores
mais pobres, receosos de que uma mudança no Planalto signifique a perda dos
apoios sociais.
A máquina
propagandística do PT, de enorme poder triturador dos adversários, tem agitado
esse fantasma e isso poderá explicar a recuperação de Dilma nesta reta final
(as primeiras sondagens pós primeiro turno davam vantagem a Aécio; nestes dias
finais da campanha, Dilma já surge à frente).
As
características dos candidatos aumentam essa dualidade: Aécio Neves, neto de
Tancredo Neves (que venceu as eleições presidenciais de 1985, mas morreu antes
da tomada de posse), nasceu em berço de ouro e tem família influente há várias
décadas em Minas Gerais e na política nacional.
Uma análise
para lá dos rótulos das campanhas mostra-nos que essa dualidade é artificial.
Esta não é, sequer, uma luta entre esquerda e direita.
Em primeiro
lugar, porque o PT, desde que tomou o poder, há muito que abandonou práticas
«de esquerda» na governação (basta dizer que grande parte das empresas e dos
«mercados» desejam a reeleição de Dilma).
Depois,
porque, ao contrário do que alguns por cá dizem, Aécio Neves não é «de
direita». Tal como Fernando Henrique, de resto, não o era quando foi presidente.
O PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira) é um partido moderado, de
centro-esquerda, que acredita nos apoios sociais, mas propõe menor intervenção
estatal do que o PT assumiu.
Em Portugal,
Aécio estaria algures entre o PS e o PSD e bem mais à esquerda do CDS/PP.
Fernando Henrique, é bom lembrar, era uma das referências políticas
internacionais de Mário Soares e António Guterres durante a década de 90…
A questão é
que o cenário político, no Brasil, está mais fletido à esquerdo, se comparado
com o nosso.
A escolha de Marina
O mais
curioso é que este duelo no segundo turno marca uma espécie de «regresso» à
bipolaridade PT/PSDB, que tem marcado as duas últimas décadas na política
brasileira.
Fernando
Henrique era do PSDB, Lula e Dilma são «pêtistas». Os 20% de Marina há quatro
anos e os 22% da mesma Marina agora no primeiro turno pareciam indicar uma
terceira via com força para terminar com essa bipolaridade.
Mas não. O
centro político continua a ser decisivo e a escolha de Marina por Aécio (ideologicamente
improvável, mas politicamente previsível) mostra que os extremos, no momento da
decisão, tendem a aproximar-se da moderação.
O beija-mão
(literal) do candidato do PSDB a Marina Silva, a selar o apoio para o segundo
turno (que poderá ter como contrapartida a entrega do cargo de ministra dos
Negócios Estrangeiros à candidata que na primeira volta arrecadou 22%
eventualmente decisivos) pode ficar para a história como a imagem que decidiu a
eleição presidencial.
Os quase 60%
de votos-sem-ser-em-Dilma no primeiro turno pareciam dar boa base de vitória a
Aécio para o segundo turno. Os apoios de Marina e da família do falecido
Eduardo Campos reforçavam essa ideia.
Depois dos
debates, Dilma parece ter retomado as rédeas da corrida. Chega ao dia da
votação com 2 ou 3% acima de Aécio nas pesquisas. Mas quem decide mesmo são os
eleitores brasileiros no domingo.
E a história
mostra que, na hora da verdade, têm escolhido bem.
Germano
Almeida