quarta-feira, 19 de março de 2014

Putin e Obama entre o xadrez e o «bluff» na Crimeia


«Sempre respeitámos a integridade territorial ucraniana. Não a queremos ver retalhada»Vladimir Putin, Presidente da Rússia
«Kiev é a mãe de todas as cidades russas»
Vladimir Putin, Presidente da Rússia
«Uma proposta de referendo sobre o futuro da Crimeia violaria a Constituição ucraniana e a legislação internacional»
Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos
«O uso da força seria uma situação extrema, mas reservamo-nos ao direito de utilizar todos os meios para defender os cidadãos ucranianos e russos étnicos»
Vladimir Putin, Presidente da Rússia
«As questões a resolver na Crimeia devem ser diretamente dirigidas ao governo ucraniano»
Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos 

A crise da Crimeia pode parecer apenas uma disputa de território entre Rússia e Ucrânia. Mas há muito que passou a ser, essencialmente, um jogo de forças entre os dois principais líderes mundiais do momento: Barack Obama e Vladimir Putin.
O final da Guerra Fria deveria ter-nos anunciado que o tabuleiro mundial deixara de ser dominado pelos líderes políticos de Washington e Moscovo.
Fukuyama publicava «O Fim da História» e a tese dominante era de que os EUA haviam passado a ser a única superpotência e que a URSS, entretanto desfeita e concentrada no poder russo, tendia a aproximar-se da Europa Ocidental e, por consequência, da NATO e do guarda-chuva americano.
O 11 de Setembro de 2001 foi o «cisne negro» que anunciou tempos bem mais complexos de se analisar.
Mesmo mantendo um poder militar impressionante, os EUA perderam o estatuto de «ás de trunfo» e tiveram que passar a contar com outros «players» (por vezes aliados, noutros casos, mesmo adversários até inimigos, regionais).
Não nos enganemos: a América continua a ser o único poder decisivo global. Entra, para ganhar, em todas as frentes. Mas a progressiva redução de interesse em entrar em novas aventuras (sobretudo depois das campanhas infelizes no Iraque e no Afeganistão) obrigaram os EUA a fazerem um «shift» do «hard power» (tropas no terreno, mobilização pesada) para o «soft power» (aposta na diplomacia, redução de efetivos, fecho ou diminuição de bases militares fora dos EUA).
Da «hegemonia» passou-se para a «contenção». À Doutrina Bush de «ataques preventivos para espalhar a democracia» sucedeu a Visão Obama de «estratégia de contenção, dominada pelo realismo».
A América continua a mandar, mas passou a querer fazê-lo à distância. Daí a aposta nos drones (aviões militares não tripulados), daí a redução drástica de militares americanos mortos e/ou feridos em cenários de guerra, nos últimos anos.   
Esta evolução de política tinha tudo para ser bem-sucedida.
Barack Obama, o Presidente-Nobel-da-Paz-apenas-nove-meses-depois-de-ser-eleito, nunca quis ser visto como um «líder de guerra». Cumpriu a retirada do Iraque. Cumprirá nos próximos meses a saída do Afeganistão. Inaugurou na Líbia o conceito de «leading from behind» (os americanos participaram na eliminação de Kaddhafi, mas, desta vez, foram ingleses e franceses a fazerem as despesas da frente de combate).
Na Síria, Obama demorou dois anos a dar um murro na mesa perante os crimes de Assad. E só depois de passada a «red line» do uso de armas químicas. Defendeu ação militar, evitou-a na 25.ª hora, depois da proposta de mediação de Putin.
Com o Irão, a América de Obama passou, em poucos meses, da vertigem nuclear (nos debates presidenciais em outubro de 2012, Mitt Romney mostrava gráficos a garantir que «lá para maio de 2013 o Irão terá a bomba, se nada for feito») para a cooperação a caminho da parceria comercial com o regime de Rohani. 
Esta «nova América», contida e quase avessa à ideia de avançar para novas guerras, estava até mais disposta a olhar para o Pacífico (para defender interesses estratégicos no Japão, no Vietname e na Coreia do Sul, perante as ameaças crescentes da China e da Coreia do Norte) do que para o Atlântico.
Atrapalhada com a crise da sua jovem moeda, a Europa ficou desiludida com um Obama que incensara na primeira eleição, mas a quem já olhara com mais desconfiança na reeleição, em 2012.
Nem a ideia de uma «plataforma transatlântica de livre comércio», lançada pelo Presidente Obama no discurso do Estado da União 2013, resolveu o afastamento. A aproximação comercial está ainda a ser desenhada e sobram dúvidas sobre as reais vantagens para os países europeus.
Ao mesmo tempo, em Moscovo, Vladimir Putin foi reforçando a sua liderança «imperial». Não expansionista, não agressiva, é certo, mas com um certo revivalismo imperial.
A Rússia de Putin tem interesses comerciais profundos no espaço europeu: com a Alemanha, obviamente, mas também com a França e até com o Reino Unido (uma boa percentagem dos grandes investidores da City londrina são russos).
A revolução da Praça de Maidan parecia ter-nos explicado que a Ucrânia, entalada entre Moscovo e Berlim, entre o bloco de Leste e o conforto do Ocidente, teria preferido «o nosso lado».
Mas as coisas não são bem assim. Em Kiev surgiu um novo poder ainda frágil e contraditório («pró-europeus» misturados com «neo-nazis» e até judeus e russos no mesmo governo...).
A jogada de Putin apanhou todos de surpresa: o líder russo deu sinal de força e disse bem alto que a Crimeia é, essencialmente, russa.
O mapa e a História, admitamos, não o desmentem.
Mas é aqui que entram uma profunda divergência de leituras entre americanos e russos, entre Obama e Putin. A América dá prioridade aos acordos, às fronteiras, ao direito internacional. A Rússia dá primazia ao orgulho, à história e à «noção patriótica».
O resultado do referendo não deixou margem para dúvidas: uma esmagadora maioria dos habitantes da Crimeia prefere a Rússia. Mas os valores... «norte-coreanos» da votação (só faltava mesmo terem sido 99.9%) retiraram credibilidade ao ato realizado.
O que virá a seguir?
Ninguém sabe. As frases mencionadas no início deste texto dão conta da ambiguidade de Putin: ora quer respeitar os acordos internacionais, ora avisa que Kiev, a capital ucraniana, é «a mãe de todas as cidades russas».
Tropas de Moscovo a avançar para a capital da Ucrânia? Não é impossível, mas nesta fase da crise, não se afigura provável.
Ninguém quer a escalada do conflito. A Rússia seria a grande vítima de uma afrontação direta com a NATO. Isso não irá acontecer, mas o «novo czar de Moscovo» está a testar aos limites a paciência e os receios do Ocidente.
Guerra Fria, versão século XXI, mas apenas na retórica e na batalha da comunicação. Uma disputa de territórios, um testo às fronteiras até onde poderá chegar a influência de Moscovo no espaço europeu.
Obama talvez seja forçado a alterar os seus planos de «flexão» para o Pacífico. E é de esperar que o Presidente americano se reconcilie com os europeus, numa aliança reforçada pelo receio comum do «urso» moscovita.
Há coisas que, por muito que o tempo passe, não mudam assim tanto.
Germano Almeida


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