«Sempre
respeitámos a integridade territorial ucraniana. Não a queremos ver retalhada»Vladimir Putin, Presidente da Rússia
«Kiev é a mãe de todas as cidades
russas»
Vladimir Putin, Presidente da Rússia
Vladimir Putin, Presidente da Rússia
«Uma proposta de referendo sobre o futuro
da Crimeia violaria a Constituição ucraniana e a legislação internacional»
Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos
Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos
«O uso da força seria uma situação
extrema, mas reservamo-nos ao direito de utilizar todos os meios para defender
os cidadãos ucranianos e russos étnicos»
Vladimir Putin, Presidente da Rússia
Vladimir Putin, Presidente da Rússia
«As questões a resolver na Crimeia devem
ser diretamente dirigidas ao governo ucraniano»
Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos
Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos
A crise da Crimeia pode parecer apenas uma disputa de território entre Rússia e Ucrânia. Mas há muito que passou a ser, essencialmente, um jogo de forças entre os dois principais líderes mundiais do momento: Barack Obama e Vladimir Putin.
O final da Guerra Fria deveria ter-nos
anunciado que o tabuleiro mundial deixara de ser dominado pelos líderes
políticos de Washington e Moscovo.
Fukuyama publicava «O Fim da História» e
a tese dominante era de que os EUA haviam passado a ser a única superpotência e
que a URSS, entretanto desfeita e concentrada no poder russo, tendia a
aproximar-se da Europa Ocidental e, por consequência, da NATO e do guarda-chuva
americano.
O 11 de Setembro de 2001 foi o «cisne
negro» que anunciou tempos bem mais complexos de se analisar.
Mesmo mantendo um poder militar
impressionante, os EUA perderam o estatuto de «ás de trunfo» e tiveram que
passar a contar com outros «players» (por vezes aliados, noutros casos, mesmo
adversários até inimigos, regionais).
Não nos enganemos: a América continua a
ser o único poder decisivo global. Entra, para ganhar, em todas as frentes. Mas
a progressiva redução de interesse em entrar em novas aventuras (sobretudo
depois das campanhas infelizes no Iraque e no Afeganistão) obrigaram os EUA a
fazerem um «shift» do «hard power» (tropas no terreno, mobilização pesada) para
o «soft power» (aposta na diplomacia, redução de efetivos, fecho ou diminuição
de bases militares fora dos EUA).
Da «hegemonia» passou-se para a
«contenção». À Doutrina Bush de «ataques preventivos para espalhar a
democracia» sucedeu a Visão Obama de «estratégia de contenção, dominada pelo
realismo».
A América continua a mandar, mas passou
a querer fazê-lo à distância. Daí a aposta nos drones (aviões militares não
tripulados), daí a redução drástica de militares americanos mortos e/ou feridos
em cenários de guerra, nos últimos anos.
Esta evolução de política tinha tudo
para ser bem-sucedida.
Barack Obama, o
Presidente-Nobel-da-Paz-apenas-nove-meses-depois-de-ser-eleito, nunca quis ser
visto como um «líder de guerra». Cumpriu a retirada do Iraque. Cumprirá nos
próximos meses a saída do Afeganistão. Inaugurou na Líbia o conceito de
«leading from behind» (os americanos participaram na eliminação de Kaddhafi,
mas, desta vez, foram ingleses e franceses a fazerem as despesas da frente de
combate).
Na Síria, Obama demorou dois anos a dar
um murro na mesa perante os crimes de Assad. E só depois de passada a «red
line» do uso de armas químicas. Defendeu ação militar, evitou-a na 25.ª hora,
depois da proposta de mediação de Putin.
Com o Irão, a América de Obama passou,
em poucos meses, da vertigem nuclear (nos debates presidenciais em outubro de
2012, Mitt Romney mostrava gráficos a garantir que «lá para maio de 2013 o Irão
terá a bomba, se nada for feito») para a cooperação a caminho da parceria
comercial com o regime de Rohani.
Esta «nova América», contida e quase
avessa à ideia de avançar para novas guerras, estava até mais disposta a olhar
para o Pacífico (para defender interesses estratégicos no Japão, no Vietname e
na Coreia do Sul, perante as ameaças crescentes da China e da Coreia do Norte)
do que para o Atlântico.
Atrapalhada com a crise da sua jovem
moeda, a Europa ficou desiludida com um Obama que incensara na primeira
eleição, mas a quem já olhara com mais desconfiança na reeleição, em 2012.
Nem a ideia de uma «plataforma
transatlântica de livre comércio», lançada pelo Presidente Obama no discurso do
Estado da União 2013, resolveu o afastamento. A aproximação comercial está
ainda a ser desenhada e sobram dúvidas sobre as reais vantagens para os países
europeus.
Ao mesmo tempo, em Moscovo, Vladimir
Putin foi reforçando a sua liderança «imperial». Não expansionista, não
agressiva, é certo, mas com um certo revivalismo imperial.
A Rússia de Putin tem interesses
comerciais profundos no espaço europeu: com a Alemanha, obviamente, mas também
com a França e até com o Reino Unido (uma boa percentagem dos grandes
investidores da City londrina são russos).
A revolução da Praça de Maidan parecia
ter-nos explicado que a Ucrânia, entalada entre Moscovo e Berlim, entre o bloco
de Leste e o conforto do Ocidente, teria preferido «o nosso lado».
Mas as coisas não são bem assim. Em Kiev
surgiu um novo poder ainda frágil e contraditório («pró-europeus» misturados
com «neo-nazis» e até judeus e russos no mesmo governo...).
A jogada de Putin apanhou todos de
surpresa: o líder russo deu sinal de força e disse bem alto que a Crimeia é,
essencialmente, russa.
O mapa e a História, admitamos, não o
desmentem.
Mas é aqui que entram uma profunda
divergência de leituras entre americanos e russos, entre Obama e Putin. A
América dá prioridade aos acordos, às fronteiras, ao direito internacional. A
Rússia dá primazia ao orgulho, à história e à «noção patriótica».
O resultado do referendo não deixou
margem para dúvidas: uma esmagadora maioria dos habitantes da Crimeia prefere a
Rússia. Mas os valores... «norte-coreanos» da votação (só faltava mesmo terem
sido 99.9%) retiraram credibilidade ao ato realizado.
O que virá a seguir?
Ninguém sabe. As frases mencionadas no início deste texto dão conta da ambiguidade de Putin: ora quer respeitar os acordos internacionais, ora avisa que Kiev, a capital ucraniana, é «a mãe de todas as cidades russas».
Ninguém sabe. As frases mencionadas no início deste texto dão conta da ambiguidade de Putin: ora quer respeitar os acordos internacionais, ora avisa que Kiev, a capital ucraniana, é «a mãe de todas as cidades russas».
Tropas de Moscovo a avançar para a
capital da Ucrânia? Não é impossível, mas nesta fase da crise, não se afigura
provável.
Ninguém quer a escalada do conflito. A
Rússia seria a grande vítima de uma afrontação direta com a NATO. Isso não irá
acontecer, mas o «novo czar de Moscovo» está a testar aos limites a paciência e
os receios do Ocidente.
Guerra Fria, versão século XXI, mas
apenas na retórica e na batalha da comunicação. Uma disputa de territórios, um
testo às fronteiras até onde poderá chegar a influência de Moscovo no espaço
europeu.
Obama talvez seja forçado a alterar os
seus planos de «flexão» para o Pacífico. E é de esperar que o Presidente
americano se reconcilie com os europeus, numa aliança reforçada pelo receio
comum do «urso» moscovita.
Há coisas que, por muito que o tempo
passe, não mudam assim tanto.
Germano Almeida
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